E ser feliz é tão fácil, meu Deus! Tão fácil!
Artistas costumam ser felizes porque realmente escolheram fazer o que fazem, apesar de muitos não-artistas considerarem a arte como uma ocupação adequada aos preguiçosos, àqueles que fracassariam fragorosamente no mundo real, onde o “pega pra capar” é mais forte, onde “o buraco é mais embaixo”.
Essa noção costumava aborrecer-me. Hoje, após ralar tudo o que ralei, acho-a meramente risível.
Poucos, muito poucos, têm a mínima noção do trabalho que dá ser artista. Poucos, em anos de trabalho, já se concentraram tanto quanto um artista se concentra nos poucos minutos de duração de uma única performance sua, cuja execução pode ter dele exigido anos de treinamento técnico e dedicação repetitiva.
Poucos estudaram tanto, e por tanto tempo, quanto um artista. Poucos continuam a estudar por tanto tempo quanto um artista.
Mas isso não importa, porque artistas poder ser pagos para distrair todo mundo de tudo, mesmo de frustrações! Artistas vivem para isso! Então é óbvio que alguns artistas frustrados sempre podem alimentar seu desejo por arte ao usufruir trabalho artístico. (Certos críticos, aliás, ainda conseguem viver disso; alguns deles, numa espécie de revanche de inveja vingativa, falam mal de artistas, mesmo sem saber diferenciar um mi bemol de um peido de cabra!)
Como artista, agradeço, sim, sou pago dessa forma. Mas também lamento.
Eu preferiria ter mais colegas que platéias!
Mas muitos bons artistas sufocaram suas vocações em função de uma noção distorcida do que seja a vida, muito mais baseada em materialismo do que na simplicidade de ser feliz com muito pouco – como fui, na maior parte de minha vida.
Já passei por apertos terríveis, mas a música sempre me consolou, mesmo no pior deles. A música NUNCA mentiu pra mim, e sempre soube ser simpática à minha eventual falta de competência ou dedicação - ela é complacente, mas nunca indulgente.
Por isso sempre saí de cena quando a música ia mal, à exceção de uma única ocasião, quando atuei como um dos salva-vidas desta mesma música (uma que ia mal).
Sei perfeitamente bem que até mesmo em minha carreira poderia ter evoluído mais, mas sempre preferi sinceridade a fingir que estava feliz onde não estava ou a puxar o saco de qualquer um ou fingir que a música funcionava, quando estava claro que nunca funcionaria. Teatro nunca foi meu forte.
Com isso, a música que produzi sempre foi honesta, e com essa atitude de desprendimento descobri que a vida pode ser bem mais do que a peça encenada cotidianamente no Grand Guignol da pusilanimidade e da acomodação, onde marionetes covardes encenam atos de sucesso para uma claque paga por suas próprias conveniências, todas ditadas por ambições, posto que não hesitariam nem por um segundo em atropelar aqueles astros que aparentemente idolatram.
Lamento, também, que poucos artistas materialmente bem sucedidos no teatro da vida consigam deixar de entregar-se de modo tão agudo aos prazeres da boa vida.
Lamento, mais ainda, que muitos vivam envenenados pelas benesses obtidas pelo “sucesso”, disfarçando suas inadequações à verdade de sua arte – seja esta qual for – ao se tornarem em seres voluntariamente intoxicados por substância danosas à saúde, fazendo uso delas sistematicamente, com freqüência diária, às vezes.
Com isso vão tornando-se lassos (em todas as acepções do termo: fatigados, cansados, dissolutos, enervados, gastos, bambos, relaxados, frouxos), com o coração e os pulmões a explodir, com os fígados a estertorar, mais e mais indispostos a reagir contra si mesmos a favor de si mesmos, cheios de excessos trazidos pela bonança de viver uma vida dita reta.
De onde estou, hoje – como um artista voador que decidiu contemplar a possibilidade de ter que sair do trapézio para apenas manipular com carinho a corda de alçada – sinto a vibrar, muito intensamente, em toda a minha atual pobreza física, uma enorme satisfação por tudo que pude me conceder no tempo em que voava sem receio, confidente em ser capaz de alcançar o braço do colega.
Sei que fiz a escolha certa. Sei que fui, sou e sempre serei são, com a graça de Deus.
Gostaria de poder incentivar todos os que uma vez trocaram o caminho de suas vocações a abrir um atalho em direção à felicidade de figurar no centro do picadeiro de seu próprio circo, sem medo de fazer o papel do palhaço (que, por acaso, é o artista que mais admiro e com o qual melhor me identifico).
Queria que todos, em todo o mundo, fizessem o mesmo. "Djá!" como diria Walter Mercado... hmm, nem tanto. Já!
Que todos deixassem de fingir e passassem a ser o que realmente são.
Mas como iria poder ajudar a fazê-lo sem auxílio da consciência e da coragem de cada um?
Não tenho poder algum sobre ninguém neste mundo, e nem quero ter, pois prezo a liberdade acima de tudo.
Minha mulher é o melhor exemplo de que ajo como falo; ela sabe disso, e vive sua vida afastada de mim, com grande liberdade. Quase nunca nos encontramos. Passamos semanas sem nos falar. Mas ela sabe, assim como eu sei, que estamos juntos por escolha, que nada além de nossa livre vontade espiritual de estar com o outro é motivo de nossa milagrosa união.
Assim como eu, ela sabe que tudo pode mudar, pois há liberdade. Mas parecemos ambos inteligentes o bastante para considerar que temos pouquíssimas chances de encontrar alguém mais que, como nós dois, possa dar tanto de si ao outro, mesmo na mais prolongada das ausências.
Para mim, basta saber que ela existe, e não poderia ser desonesto em afirmar que pode haver outra. Ter outra seria trair a mim mesmo, desonrar a minha verdade.
Hoje, por exemplo, não tenho a menor idéia de onde ela esteja. Não nos falamos desde muito antes deste Natal, mas nem assim pretendo acompanhar seus passos, quando nos falarmos, indagando, mesmo casualmente, onde esteve, a não ser que ela decida dizer, espontaneamente.
Amor não é complicado quando existe confiança no outro e no próprio sentimento. Não preciso dizer a ela o quanto a amo, porque meu amor veio dela. Ela sabe.
Sempre será assim, não importa se o tempo e a distância que nos separam pudessem ser confundidos por outrem com algo diferente, como frieza ou desinteresse. Eu apenas espero, pacientemente, sabendo que serei outro ser humano, pior do que sou, se me deixar afetar por nosso afastamento, até porque este não é compulsório, isto é, nós decidimos assim.
Apenas torço e rezo para que ela esteja bem, com saúde, cuidando de si, mas sem querer acompanhar seus passos para saber disso. Ela deve saber de si. E sabe, com certeza, que sempre estarei aqui, pronto para dar qualquer auxílio de que necessite, mesmo se estiver além do meu alcance. Mas caminha sem interferência minha, exceto para ajudar, a pedido seu ou quando percebo que ela necessita.
Neste ponto da vida em que estou hoje, como pai, os únicos passos que posso acompanhar a interferir (mas sem interferir demais), são os passos de minha pequena bailarina, Alice, minha filha, o segundo grande amor da minha vida. (Digo “segundo” porque só descobri o valor desse sentimento após conhecer minha mulher, que o extraiu de mim, pela primeira vez na vida, há pouco mais de dois anos.)
Meu poder sobre ela é legal, e busca preservar sua integridade física e moral. No mais, sempre será ela consigo mesma.
Não posso querer seu respeito sem conhecê-la e respeitá-la, aceitando suas idiossincrasias. Não tento mudá-la, apenas chateio um pouco, de vez em quando, porque sou mais criança do que ela e quero sair, brincar, rir e me divertir quando ela, se deixada na sua, ficaria em casa.
Adoraria se ela descobrisse em si uma artista, e tentaria ajudá-la do mesmo modo como a educo: com a troca de experiências e ao proporcionar oportunidades de ver o mundo sem ilusões, mostrando todos os lados que conheça. Não quero criar uma pessoa iludida com a vida.
Mas se ela se descobrir uma permanente incógnita, uma metamorfose ambulante, eu a acompanharei em todas as suas buscas, assim como sempre me dispus a acompanhar todos vocês, amados amigos, em sobressaltos causados por seus saltos rumo ao desconhecido. E é cada trambolhão qu‘ocês toma!
De um modo ou de outro, somos todos uma coisa só, e a disposição de cada um em dar o salto para cada novo dia seguinte já é grande o bastante para dar conta de ter arte na vida.
Cuidem muito bem de si mesmos, em corpo e alma (nessa ordem) neste ano que se inicia daqui a pouco, e saibam que sempre estarei aqui, a balançar em meu trapézio, livre, leve e solto, mas pronto a estender a mão – mesmo que eu precise descer, mesmo que eu precise deixar de voar, seja pelo tempo que for.
Sem vocês, meus amores, eu não sou ninguém!
Mas todo o cuidado é pouco, comigo, porque eu também posso cair e me machucar!
Liberdade deixa a gente leeeeeve...
Saúde, paz, amor e luz, muita luz, são os desejos da atual família Leme (que pretende crescer, um pouco),
Mario, Alice, Dandara, Francisco, Roberto, Vini e Tunico
terça-feira, 30 de dezembro de 2008
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