segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

OUSAR O SALTO MORTAL - II

Por isso penso, agora, avaliando a validade de minha experiência.

Acho que se não pararmos para pensar na vida, pelo menos de vez em quando, nem que seja para compartilhar da experiência, estaremos vivendo sozinhos, felizes em contemplar nossos umbigos, em egolatria totalmente tola.

Não digo nada, aqui, para jactar-me do tanto que fiz. Digo-o apenas como incentivo à execução do salto mortal!

Por que fazer algo, qualquer coisa, diferente do que realmente queiramos? O que nos obriga a chegar a ponto de viver a vida inteira num exercício de ser diferentes do que de fato somos?

Acho que se eu tivesse sido médico, pra ficar no exemplo citado, teria sido, com certeza, um excelente profissional. Seria um médico muito rico e bem sucedido, não tenho dúvida alguma.

Mas estaria, com certeza, no exercício de uma possibilidade diversa da de minha vocação, entretido com um jogo de espelhos tortos, em cujas imagens basearia minha projeção material.

Estaria a viver em função da projeção externa de uma imagem distorcida daquilo que sou, do que habitava o âmago de minha essência. Em suma: pareceria ser o que era, mas não seria aquilo, de verdade!

Em verdade, viveria a massacrar meu instinto com o uso que teria feito de minha inteligência, em vez de ter me aproveitado dessa mesma qualidade pessoal para viver plenamente meu instinto - assim como fiz, tornando-me tão feliz.

Fingiria ter pleno gosto no que fizesse, pretendendo me enganar quanto a estar satisfeito com o que pareceria ser (ou seria) – mesmo sabendo que queria muito ter sido algo totalmente diferente.

Estaria, em suma, sempre, a contar uma mesma mentira a mim mesmo, permanentemente a fingir acreditar que considerava aquela mentira como uma verdade.

E, assim, estaria mentindo para o mundo inteiro, o tempo todo.

Com isso, desgraçadamente, teria transformado minha vida inteira em uma mentira, o que teria feito para satisfazer alguém mais, algo mais ou, sei lá eu o quê, uma noção qualquer, socialmente mais aceita, mais palatável de ter optado “melhor”, escolhendo algo possivelmente (ainda hoje) "mais certo", "'mais rentável". Ainda mais no meu caso!

Teria feito todo esse esforço em construir uma vida alternativa à que minha verdade comandava para não ter de lidar com a frustração por não ter cumprido a vocação que tenho; frustração que se acumularia, no tempo, em proporção direta ao intervalo em que tivesse estado afastado dela - caso um dia me reaproximasse.

Meu Deus! Valei-me, Santa Cecília! E pensar que poderia morrer afastado dela! Eu hoje poderia estar envelhecido, por dentro e por fora, carcomido pela covardia!

Quando tenho de olhar para para as imagens de alguns dos meus pares de geração, quase todos encanecidos, cansados, amargurados, azedos, tristes, gordos e, então, percebo a forma como encaram a minha imagem, sinto uma estranha sensação de vergonha!

Meu Deus, por quê? Por ter-me permitido percorrer o íngreme acesso que leva à felicidade da alma, ao invés de ir pelo caminho plano que me teria levado à "felicidade material" (entre aspas, porque, francamente, não acredito nisto: ser feliz no acúmulo de matéria, por si só).

E então repito, ainda, atônito, as mesmas perguntas que fiz a cada novo testemunho de uma das muitas vocações perdidas que acompanhei.

Por que não tentar, meu Deus? Por que não ousar? Por que ter de vir a usar alguma espécie de tóxico pra esquecer do trabalho de que não se gosta quando se pode, ao invés, estar sempre embriagado pelo trabalho que ama?

(Quando trabalhei em hospital, conheci um médico, filho de médico, que ocasionalmente se drogava com morfina, para poder anestesiar-se e conviver com a profissão, pois a dor que a presença da morte lhe causava sempre fora algo totalmente insuportável - eu ouvi isso diretamente dele, pessoalmente, olhos nos olhos.)

Então eu acredito piamente, hoje, com tudo o que sei e vivi, que há perigo para a alma em fazer uma escolha menos que natural.

Se não nos detivermos o bastante a observar a vida, para perceber o risco que SEMPRE há em viver, sejamos sambistas ou engenheiros, poderemos nunca tentar – ou sequer intentar – a ousadia de dar qualquer salto diferente daquele mesmo velho truque de todos os dias, algo cujo equivalente, no "mundo artístico", seria aquele ato burocrático de um artista desonesto com seu público e sua arte.

Triste espetáculo! Ambos cansados, ato e autor estacionarão na vida. Poderão serão bem avaliados, ao serem examinados acerca de seus conceitos – próprio, de si, e alheio, sobre si.

De si, por certo, estarão sempre cheios, de um modo ou de outro, seja enfarados ou cheios de si. Alguns a disfarçar o enfado a fingir encher-se de si.

O autor, acomodado, viverá em torno de algo que garanta ilusão de conforto, estabilidade, sucesso. Bens. Coisa que tem. Coisas. Nada.

Pensa o artista acomodado: "Mudar? Pra quê? Posso, no máximo, mudar de praça, trocar os figurinos e cenários, viajar o mundo, conhecer coisas, pessoas e lugares novos."

Sim, pode. Mas com a alma pela metade, vivendo apenas de sua energia, não do ânimo que pode proporcionar.

Todo mundo pode fazer isto: viver a repetir seu invariável ato e suas variantes, algumas até mesmo bizarras e aventureiras, vezes sem conta, apenas por "segurança".

Todo mundo pode ousar, de vez em quando, tentando um novo número, ensaiado vezes sem conta, mas para só brincar de viver.

Fará testes e mais testes para atos que não tornará públicos, com base na segurança de que sempre haverá algo que supostamente dará sustento, independentemente de o ato de viver ter perdido todo o seu brilho natural, pois tornou-se apenas em mecânica repetição de um mesmo número - o único que já tentou, o primeiro e último que tentará.

Morrerá famoso, mas sem dar à luz o mais pleno poder de sua criação.

É fácil um artista do trapézio sobreviver assim, a acreditar que exista algo, como uma corda presa ao teto, que mantém um único e feliz destino seguramente atado à volta do corpo, a segurá-lo e sustentar um eventual desequilíbrio.

Ou uma rede, que deixe esse ator que se faz artista – finge ser o que não é – despreocupado de si, caso se desconcentre a ponto de cair.

A cada sucessiva queda, basta um aceno simpático e viril à platéia para que tudo se novamemente se encaixe, e o ato tentado torna-se no mesmo sucesso de sempre.

Mas nada disso existe. Não há sucesso. Não há fracasso. Nada existe, além da alma. Não há segurança. Nada é permanente. Tudo pode mudar. É ilusão crer que tudo não possa ser como é: mutável.

Não há garantias de sucesso verdadeiro, na vida, exceto quando se ama o que se faz com paixão violenta e total entrega!

Sim, total entrega ao comando da alma!

Por quê?

Simples: quando a sustentação do ato assim for, advinda da alma, ela poderá vir somente do ânimo! Ainda que seja inexistente no espaço do picadeiro, enquanto for gestada, será permanente no tempo da vontade de realizar, até quando virar aplauso!

Um artista pode criar o mundo todo de novo em sua mente e saber que poderá dar vida à sua idéia, mas esso é o artista que cria, que muda, faz, desfaz e refaz!

O maior sucesso é fazer! Fazer com gosto, com verdade, por inteiro, entregando-se ao trabalho a ponto de esquecer-se inteiramente de si mesmo. Poucos fazem isso. É a mais rara das qualidades, na vida e na arte. (Muitos confundem excessos quantitativos com demonstrações de qualidade.)

Quantos artistas de verdade existem por aí, gente que nunca quis sequer descobrir a si mesma? Quantas dessas almas que terão de reencarnar para cumprir a missão de mensageiros de Deus que o Universo lhes atribuiu?

Muitos vão avante e depois retrocedem, receosos, e buscam atos mais simples e confortáveis. Outros, sem respeito próprio, usam a desculpa de que fazer arte seja coisa para vagabundos, para os pouco dispostos, para os que optaram por ócio improdutivo. Muitos esquecem de se pode fazer QUALQUER COISA com engenho artístico.

Pena. Um único descuido na escolha pode ser fatal! Ela pode ser descoberta como errônea após seus resultados terem sido tão prolongados no tempo da vida que este se veja encerrado sem que haja chance de escolher de novo, tentar de novo e errar de novo, se necessário.

Aos 50 anos de idade, caí, sim, muitas vezes. Tenho orgulho disso. Amo todas as minhas muitas cicatrizes, assim como tenho um enorme carinho por todos aqueles em quem possa ter causado uma ou outra marca indelével.

Quem se acomoda com o trapézio eternamente situado a dois metros do chão, segue o barquinho da mentira, vida afora, parando de porto em porto, tentando fixar-se em algum ponto. É um empreguinho aqui; um concurso ali; um bico cá; uma bocada acolá; estudos para formar-se em uma profissão totalmente afastada de toda a verdadeira vocação e talento.

Apenas para depois de tudo isso tentar conseguir passar num concurso para um bom emprego público, bem ao lado do porto de onde o barquinho zarpou, em sua viagem inaugural, tornando a vida numa longa trajetória no tempo; mas que, no espaço, levou do nada até lugar nenhum!

Tem gente que fica rica, assim! E acha bom! A todos, sem exceção, dou parabéns, a aplaudir de pé, pois eu não o conseguiria, jamais.

Enquanto o artista hesitante se prepara para dar seu salto, o seu tempo de vida passa ao largo, e o barquinho vira uma enorme estrutura amorfa, vagando em círculos concêntricos – ao redor do ego –, toda montada com a frustração do desejo verdadeiro a ser disfarçada de empenho em trabalho.

Tudo de mentira, tudo deixando de lado o dom recebido pela natureza, tudo para ganhar mais dinheiro do que seria necessário para viver em plena realização de sua vocação para ser, simplesmente, feliz. (continua)

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